Narrativas bioCARTOgráficas

Aproveito esse espaço virtual para compartilhar alguns escritos bioCARTOgráficos. Essas narrativas de fragmentos dos meus "traços biográficos” foram importantes dispositivos de (trans)formação durante meu doutoramento, em que pude compreender como as múltiplas trajetórias que foram/são/serão construídas pelas experiências vividas influenciam e são influenciadas a partir da minha relação com o Outro. Esse exercício da “consciência cartográfica” resgataram recordações de uma infância vivida no sítio e filha de apicultores e de uma fascinação por mapas determinando a escolha da Licenciatura em Geografia como curso superior. 




De criança seduzida pelos mapas: Atlas azul

Talvez antes eu não fosse consciente, ou não a esse ponto, mas tenho que confessar que desde pequena tenho um fascínio pelos mapas. De tudo o que eu possuía na infância, o Atlas Azul me desperta mais saudades. Ele tinha na capa dura uma fotografia aérea da Terra, o que lhe dava mais esplendor.

Na verdade, o que eu queria mesmo era um globo terrestre, como aquele do Castelo Ra-Tim-Bum, para fazer a brincadeira de girar, mas no sítio havia apenas o atlas que veio junto com a assinatura do jornal. Igualmente funcionava! Acomodava com prazer no meu colo e abria o grande livro com uma satisfação incrível. Fechava os olhos, apontava com o dedo um ponto ao acaso em um dos mapas e dizia cantarolando “Vamos ver se esse atlas pode me responder?". Batendo o dedo sobre o país escolhido ao acaso, pensava “é para cá que vou viajar! O que será que tem lá?”. Logo em seguida, consultava, no final do livro, o índice remissivo de países para saber mais detalhes do meu destino: população, tamanho, moeda, bandeira e idioma. Lia atentamente cada informação como quem planeja uma viagem. 

 Mesmo com o passar dos anos, os mapas seguiam com o seu domínio sobre mim: os mapas antigos, com seus adornos e detalhes; os esculpidos em pedras, em que pude sentir os rios entalhados nas pontas dos dedos; as cartas portulanas, com as direções dos ventos “invisíveis”; e até mesmo os topográficos, com seus emaranhados de linhas que me saltam aos olhos, revelando o contorno do relevo. O encantamento era tanto que cheguei a sentir na pele, literalmente, os traçados das suas linhas duras. Uma traçadora de mapas, que assim como Frei Mauro[1], busco em meus mapas “um retrato de mim mesma”. Cartografar é algo da minha experiência constante e cotidiana.
Verão de 2016

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Da viajante cartógrafa: No Deserto de Dali

Caderno de Viagem: Levando o olhar para passear
Deserto de Dalí – Bolívia (Outono de 2017)

Por muito tempo, o meu Eu coincidia com um lugar geométrico, de onde eu pisava e olhava. Meus itinerários seguiam sempre o rumo da razão cartesiana. Porém, havia um vazio dentro de mim. Vazio que lentamente me dominou. Precisei ir ao encontro do meu Eu, em uma viagem interior. Encontrar minha própria forma de sentir o mundo. O meu cenário concreto geográfico e localizável desmanchou-se. De repente passei a habitar um território indefinido, um espaço deserto e descolonizado dos poderes da linguagem cartográfica rotineira. Comecei a andar sem rumo por esse deserto desabitado com um pouco de medo, confesso. “Para que Latitude ou Longitude será que estou indo?”,[2] pensei. As fórmulas de medir o espaçotempo, próprias da minha cultura que eu dominava (e que me dominam), pareciam me trair. Suas convenções métricas e representações começaram a se desfazer. Cansada, deitei e deixei cair sobre mim meu “belo” mapa, que sempre me foi de muita serventia em outras viagens. Seus atributos “fundamentais” mais pareciam uma camisa de força, e ali em nada me orientavam. Estirada no chão, apreciei cada detalhe dessa paisagem que eu tinha diante de mim e da qual saltavam os objetos desmantelados. Precisei me desprender das minhas formas convencionais e fixas para ler esse novo mundo. Agora, com outros olhos, sem meus óculos, lhe darei um novo sentido.
Outono de 2017
Para download da narrativa e do quadro, clique aqui
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Tinta sobre pele: Nascimento



A função deste mapa-tatuado não é apenas servir como instrumento de localização, indicando cartesianamente minha cidade de nascimento. Os signos presentes neste registro permanente e doloroso remetem a um gesto que delimita minha própria identidade cultural, e talvez por isso possa provocar alguns estranhamentos ao leitor ou à leitora. Um primeiro estranhamento por ceder lugar à experiência sensorial e estética de tomar a minha própria pele como suporte cartográfico. Afinal, não estamos habituados visualmente com mapas em outros tipos de superfície além da plana. Um segundo, provocado pela escolha da orientação ao Sul[3], já que estamos habituados à orientação Norte.
Inverno de 2017

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Mapa-poema inspirado no mapa-poema de Howard Horowitz (Manhattan, 1997) e nos escritos de Jörn Seemann (Carto-crônicas: Uma viagem pelo mundo da Cartografia, 2013) e de Marcio D’Olne Campos (Porque SULear?, 2016).

Para download do mapa-poema em PDF clique aqui
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[1] Frei Mauro foi um célebre cosmógrafo que cartografou o “velho mundo” (Ásia, África e Europa) com notável precisão, sendo um dos primeiros mapas a representar o Japão. O mapa-múndi de 1459, de 2 metros de diâmetro, tem projeção de toda a esfera da Terra num círculo plano. O mapa segue a tradição da Cartografia árabe daquela época (e contra o costume ocidental) em orientar o mapa com o Sul no topo (CAMPBELL, 1987; WOODWARD, 1987). James Cowan transformou os escritos de Frei Mauro no romance semifictício O sonho do Cartógrafo apresentando a metáfora do desejo, e ao mesmo tempo da impossibilidade do ser humano abarcar todo o conhecimento, e mais ainda representá-lo em um único mapa. O livro finaliza com a indagação de como colocar em um mapa físico o que é invisível aos olhos.

[2] Referência ao romance Alice no país das maravilhas – Entrando na toca do coelho.

[3] O mapa presente nesta tatuagem é uma adaptação do “mapa Invertido” do pintor Uruguaio Joaquim Torres García. A primeira publicação ocorreu na edição da revista Círculo y Cuadrado (1936), e em seguida no livro Universalismo Constructivo (1944) em um movimento artísticos de “orientá-los”: "He dicho Escuela del Sur; porque en realidad nuestro norte es el Sur. No debe haber norte, para nosotros, sino por oposición a nuestro. Por eso ahora ponemos el mapa al revés y entonces ya tenemos la justa idea de nuestra posición (TORRES-GARCÍA, 1944, p. 250)".





2 comentários:

  1. Parabéns pelo trabalho!!! Estamos desenvolvendo uma atividade de extensão na uff, de cunho multidisciplinar, que permeia a percepção ambiental de crianças. Em algum momento gostaria de aproximar nossas perspectivas...

    grande abraço
    Ronaldo

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    1. Olá Ronaldo Que bacana!! Sim me escreva thiarav@gamil.com

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